David Epston é um dos co-fundadores da terapia narrativa e é amplamente respeitado por seu trabalho inovador e criativo. Ele introduziu no campo da terapia familiar uma série de abordagens alternativas, incluindo o uso de ligas, arquivos e co-pesquisa. David mora em Auckland, Nova Zelândia, onde essa conversa aconteceu. Aqui aprendemos sobre o termo co-pesquisa, criado por David Epston no final dos anos 1970.
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Trecho:
Eu sempre pensei em mim mesmo como pesquisador, mas em problemas e relacionamentos que as pessoas têm com esses problemas, e não nas próprias pessoas. A estruturação de perguntas e entrevistas narrativas permite que eu e outros, co-pesquisemos problemas e os conhecimentos alternativos que são desenvolvidos para abordá-los.
O conceito de co-pesquisa é de suma importância para mim neste trabalho, pois estrutura uma outra maneira de conhecer e estar junto. Permite um relacionamento que reúne o propósito de cada pessoa. O objetivo da pessoa que vem me consultar é geralmente pesquisar em conjunto maneiras de mudar seu relacionamento com o problema específico de suas vidas. Meu propósito no trabalho, bem como ser um co-pesquisador nesse processo, é tentar adicionar ao arquivo de conhecimento em torno desse problema em particular, já que isso é algo que levarei adiante em meu trabalho com os outros. Muitas pessoas que compartilharam essas relações de co-pesquisa seguiram em frente uma vez que as preocupações que estávamos pesquisando não são mais um problema para elas, e está tudo bem. Mas como co-pesquisador, como arquivista, você tem a responsabilidade moral de manter esses conhecimentos alternativos e disponibilizá-los a outras pessoas de maneira que seus colaboradores confirmem
Existem outras maneiras pelas quais o engajamento na co-pesquisa dá forma a uma ética particular deste trabalho que acredito ser significativa. Por exemplo, a pesquisa conjunta é informada por um tipo particular de pesquisa. É moldado por uma imaginação etnográfica, que novamente é um termo da antropologia. No meu ensino, acho que essa imaginação etnográfica é uma das coisas mais difíceis de transmitir e eu realmente não sei por que isso acontece.
1- Você pode dizer um pouco sobre o que você acha que distingue a imaginação etnográfica de outras formas de investigação?
Eu acho que o que distingue a imaginação etnográfica é a sua morfologia, a forma que ela toma. Eu acho que requer uma disciplina considerável e uma considerável humildade. Quando um antropólogo visita os povos tradicionais das Ilhas Tiwi, a noroeste de Darwin, se eles quiserem se envolver com os significados e entendimentos do Tiwi, serão obrigados a questionar todas as suas próprias suposições da vida. Os modos de pensar e compreender a vida das pessoas de Tiwi baseiam-se em pressupostos completamente diferentes daqueles de nós das culturas ocidentais. Para se envolver com os significados e entendimentos do Tiwi, um antropólogo seria obrigado a ter o que Joan Laird chama de “informado não saber”. Eu acho que isso é relevante para os terapeutas que trabalham com aqueles que nos consultam. Dentro do campo da terapia, por muitos anos houve uma suposição implícita de que, para ajudar alguém, você deve saber muito sobre eles. Além disso, se você se encontrasse em uma situação em que não conhecia o suficiente sobre uma determinada pessoa, haveria uma outra suposição de que você não deveria demonstrar essa falta de conhecimento. Abordar a terapia com uma imaginação etnográfica é uma proposta diferente. No entanto, “informado não saber” ainda está sabendo muito. Ser capaz de ajudar as pessoas a conhecer seus próprios conhecimentos é uma forma considerável de conhecimento. Requer um tipo diferente de investigação, que envolve colocar de lado as próprias hipóteses, sem pretender que você conheça a experiência de outra pessoa e “caminhe no lugar deles”, mas sim participando de uma investigação baseada na imaginação etnográfica, na qual você procura suas versões de como eles vivem sobre suas vidas.
A outra consideração relevante é que, nas profissões, fomos treinados para pensar de maneira abrangente, de maneira grandiosa. Eu admito que isso pode ser uma forma atraente de descobrir as coisas. Mas gosto do particular, do preciso, do minuto. Acredito que a terapia envolve uma etnografia do particular, e a única maneira de se envolver em tal etnografia é fazer perguntas específicas. Muitas pessoas foram educadas com esse tipo de pergunta. Às vezes, as pessoas vêem o uso de perguntas específicas como diretivas ou de liderança. Mas não tenho nenhum problema em fazer perguntas que orientem as pessoas a descobrir os fundamentos de seu conhecimento. Eu não tenho nenhum problema com perguntas que levam as pessoas a procurar, e que trazem o que quer que esteja lá fora em seu campo de visão. Eu nunca sei o que será encontrado, mas acredito que tenho a responsabilidade, como co-pesquisador, de utilizar uma prática etnográfica rigorosa.
Curiosidade respeitosa é uma coisa, e uma coisa boa, mas eu gosto de ver isso usado com uma perícia considerável. Acredito que o que torna essa especialização possível é uma imaginação etnográfica e uma etnografia do particular.
Muito interessante essas ideias de co-pesquisa e de etnografia do particular.
Pensando na analogia entre a pesquisa etnográfica e os processos terapêuticos, me pergunto se a primeira pode alcançar o mesmo grau de “parceria” que a terapia, uma vez que a pesquisa antropológica atende ao interesse e à iniciativa do pesquisador, visando algum nível de conhecimento sobre o “outro” (mesmo que “com o outro”).
É verdade que a própria noção do que seja uma pesquisa etnográfica vem mudando, nas últimas décadas, juntamente com o lugar atribuído (ou conquistado) dos grupos pesquisados. Mas imagino que o processo terapêutico (colaborativo ou não) é, via de regra, iniciado pela demanda de quem traz o problema e não por um interesse de conhecimento do terapeuta.
Realmente, utilizar a metáfora da etnografia na terapia traz certos cuidados nas especificidades de cada uma, porém traz uma riqueza no capo da terapia
Pra vim faz muito sentido isso…. moro em Manaus/Amazonas, atendi uma família vinda da realidade do tráfico de drogas e violência familiar, abuso, etc. Utilizava o conceito de alteridade que acredito que também faz sentido, quando temos que “entrar” na família, na história familiar e trabalhar com os próprios conceitos e recursos de uma realidade de vida totalmente diferente da sua. É complicado, desafiador e de muito aprendizado.
Verdade, também já aconteceu comigo atendendo pessoas da comunidade do Turano aqui no Rio de Janeiro, eu não sabia nada a respeito das pessoas e da comunidade, foi um “informado não saber” muito duro.
Gostei muito da ideia de sermos nomeados de co-pesquisadores, sendo essa, uma outra forma de estar no encontro e a partir daí criar novas formas de lidar com o problema, de forma respeitosa e sem julgamentos, construindo de forma responsável, possibilidades para o indivíduo e não só, mas favorecer condições que promovam a comunidade a que está inserido e criarem recursos para resolverem suas questões.
Interessantes as colocações do Epston! Acho que temos que assumir um papel de especialistas nas nossas práticas, em criar espaços seguros para conversas transformadoras. Isso requer muito de nós, este olhar atencioso e particular sobre como estamos em cada encontro, como ele nos desafia. A partir disto, propor boas perguntas para as pessoas que nos consultam, de forma curiosa e ética.
Trazer conceitos e vivências da antropologia para a terapeuta é um procedimento enriquecedor para esta, assim fugimos dos paradigmas da medicina que sempre consideraram a terapia um processo de cura, de um indivíduo doente. A atitude do terapeuta com “imaginação etnográfica” e considerando a terapia como uma “etnografia particular” é uma grande contribuição de David Epston para a psicoterapia.
Interessantíssimo o conceito de co-pesquisador. Isso enfatiza a importância do terapeuta como um auxiliar no processo de cura ou melhoria com relação ao problema.
Ele ajuda a instruir, a pesquisar e pensar em estratégias e compreender o problema para o paciente lidar com a questão incômoda. E assim, prepara-o para enfrentar e lidar com essa e outras questões sozinho.
Sandra Mara de Mello
Barretos – SP
Mesmo parecendo diretivas, as pessoas podem ter necessidade dessas perguntas serem feitas para orientação, já que muitas estão perdidas e não sabem nem por onde começar o autoconhecimento.
O que me chamou mais a atenção foi o conceito de imaginação etnográfica e co-pesquisador. Penso ser muito importante nos despirmos da posição daquele que “sabe” para aquele que está junto e auxiliando quem nos procura para a terapia, no sentido deste reconhecer os próprios conhecimentos, forças e maneiras em lidar com os problemas. Desenvolver a maneira de fazer as perguntas me parece o maior desafio.
Quando eu penso nas práticas narrativas e em todo seu contexto, acabo por comparar com a realidade brasileira, principalmente dentro das profissões brasileiras e, em particular, da psicologia. Vê-se que houve trocas entre antropólogos, psicólogos, assistentes sociais e demais terapeutas e que ainda hoje essa troca ocorre para o enriquecimento das práticas narrativas. No entanto, aqui no Brasil, ao menos na psicologia, vejo muito encastelamento, algo como: – nós, psicólogos, somos os únicos donos e conhecedores desta ciência e ninguém mais pode ou é capaz de pensá-la! Não consigo imaginar algo tão rico como as práticas narrativas, por exemplo, surgindo no contexto das profissões brasileiras, encasteladas em seus saberes, onde não aceitam que quem não é formado naquela profissão possa ter algo relevante a contribuir. É isso que me deixa muito pensativo.
Muito interessante essa ideia de co-pesquisa, que tira o terapeuta do lugar de saber e de poder e o coloca no papel de pesquisador de investigador sobre os conhecimentos que a própria pessoa já possui. Essa construção diferente de papeis empodera as pessoas e as tornam protagonistas de suas próprias histórias.